A Rua do Cais dos produtos oriundos de Santarém e do Chafariz d’El-rei D. Dinis

O Cais de Santarém na planta de Filipe Folque de 1858

A Rua do Cais de Santarém é a extensão toponímica do Cais onde em Lisboa aportavam os produtos vindos de Santarém, artéria fixada já no séc. XX, em cujo perímetro lhe coube o Chafariz d’El-rei D. Dinis, em cujas bicas ao longo de muitos séculos os lisboetas se abasteceram de água.

Antes do Terramoto de 1755 esta artéria era a Rua da Ribeira e o Cais de Santarém recolhia pessoas ou mercadorias, tendo sido reparado depois de novembro de 1687 por se encontrar em ruína. Em 1736, Simão dos Santos, o mercador que tinha obrigação de prover de carne o Cardeal da Mota tinha um talho no Cais de Santarém.

Três anos depois do Terramoto, em 1758, o Cais de Santarém aparece referido na obra Mapas de Portugal, do Padre Castro e em 1777, não se chamaria Rua mas a artéria seria conhecida como Cais de Santarém já que  as louceiras que aí vendiam fizeram em novembro desse ano um requerimento ao Senado municipal para que o Meirinho da Cidade fizesse uma vistoria ao local já que haviam sido notificadas para não ocuparem mais de seis palmos de chão fora das portas das suas barracas com as louças que vendem. Em 1788 também estariam no local linheiras, uma vez que estas solicitaram ao Senado municipal que as suas barracas  junto ao Chafariz d’El-Rei fossem antes acomodadas no largo fronteiro ao Cais de Santarém. De 1792 até 1796, sabemos que neste arruamento denominado apenas como Cais de Santarém também se  vendiam frutas  e que era morada de José Peixoto do Vale que solicitou à Câmara poder fazer obras à porta de sua casa.

Planta de Filipe Folque de 1858

Pouco mais de cem anos depois do Terramoto, em 1858, conforme se observa na planta de Filipe Folque, o espaço que hoje corresponde à artéria Rua do Cais de Santarém situava-se entre o Largo do Terreiro do Trigo e o Campo das Cebolas, nele pontificando o Terreirinho e o Chafariz d’El Rei, enquanto o Cais de Santarém ficava relativamente próximo, entre a Ribeira Velha e a Alfândega dos Vinhos.

Embora possa surgir em informações municipais anteriores é  na planta de Silva Pinto de 1907 que vemos aparecer a Rua do Cais de Santarém identificada como tal. Lisboa enquanto cidade ribeirinha sempre teve cais nas suas margens e os seus topónimos estiveram quase sempre associados aos produtos que aí aportavam, como aconteceu no Cais do Tojo ou no Cais do Carvão. Mas  os cais também receberem topónimo gerado pela proveniência dos  produtos que recebiam como aconteceu no Cais de Alhandra e neste Cais de Santarém.

Nos dias de hoje, a Rua do Cais de Santarém começa no Largo do Terreiro do Trigo e vai até ao Campo das Cebolas.

A Rua do Cais de Santarém na planta de Silva Pinto de 1907

O Cais do Tojo repartido por rua, travessa e Largo Vitorino Damásio

O Cais do Tojo em sobreposição da planta de 1856 de Filipe Folque na dos dias de hoje

O antigo Cais do Tojo, lugar aberto de execução de penas capitais para servir de exemplo público, que em 1842 teve erguido o seu último patíbulo, tem a sua memória guardada em Lisboa através da Rua e da Travessa do Cais do Tojo, bem como do Largo Vitorino Damásio em cujo espaço ele se situava até cerca de 1858, razão para que a placa evocativa dos 150 Anos da Abolição da Pena de Morte tenha sido nele colocada pela edilidade, no primeiro dia de julho deste ano, dia do 150º aniversário da abolição da pena de morte em Portugal.

A última execução no Cais do Tojo, que ocupava o espaço onde hoje vemos o Largo Vitorino Damásio a encontrar-se com a Avenida Dom Carlos I, foi em 16 de abril de 1842 : o enforcamento de Francisco Matos Lobo, após prisão no Limoeiro, pelo assassinato da sua tia por afinidade, os seus dois filhos e a criada, na sua casa na Praça de São Paulo. Em  19 de fevereiro de 1841, também a forca ali se tinha erguido para Diogo Alves, condenado não pelas mortes daqueles que atirara do alto do Aqueduto das Águas Livres depois de os roubar mas pelo massacre da família de um médico no decorrer de um assalto com a sua quadrilha. No entanto, mesmo em 1842 já a pena de morte seria considerada desumana sendo disso exemplo o caso do sacerdote que acompanhava a última aplicação da pena capital em Lisboa ter morrido no local vítima de apoplexia.

Travessa do Cais do Tojo – Freguesia da Misericórdia – Placa Tipo II
(Foto: Mário Marzagão)

Rua do Cais do Tojo – Freguesias da Misericórdia e da Estrela
(Foto: Sérgio Dias|NT do DPC)

A Rua do Cais do Tojo ( nas freguesias da Estrela e da Misericórdia ) liga o Boqueirão do Duro à Avenida Dom Carlos I e a Travessa do Cais do Tojo (freguesia da Misericórdia) une a Rua do Cais Tojo ao Largo do Conde Barão, tendo ambos os topónimos sido atribuídos pela Câmara alfacinha através do Edital de 8 de junho de 1889, para substituir as antigas Rua Nova do Cais do Tojo e a Travessa Nova do Cais do Tojo.

A ligação ribeirinha de Lisboa ao Tejo é uma constante da história da cidade, enumerando a Chancelaria Régia em 1725 as praias de Alfama, Remolares, São Paulo e Boavista. O Cais do Tojo da Boavista – assim denominado para de distinguir do Cais do Tojo do lado oriental, conhecido como Cais do Tojo da Bica do Sapato – já surge mencionado em 1766, numa apresentação feita pelo juiz do povo, a referir a necessidade da construção de um Cais para a descarga e venda de tojo, carqueja, carvão e lenha, tanto na parte oriental como ocidental da cidade de Lisboa. Refira-se que tojo é uma planta arbustiva usada para cama de gado, estrume ou combustível.

O Cais do Tojo passou mesmo a ter um cais de madeira e nele aportavam inúmeros produtos, pelos quais se cobrava o donativo, um imposto municipal sobre os rendimentos, criado por resolução régia de 21 de março de 1766 e que começou a ser arrecadado a partir da publicação do edital municipal de 2 de novembro de 1769.  Sabe-se ainda que este arruamento teve em tempos um chafariz, muito frequentado por aguadeiros e populares e que em 11 de setembro de 1820 ocorreu um incêndio nas estâncias de lenha que lá existiam, tal como no ano seguinte o posto da 4.ª Companhia de Infantaria da Guarda Real da Polícia, nele situado, sofreu um grande incêndio, após o que surgiu nas imediações o topónimo Boqueirão do Duro.

Largo Vitorino Damásio – Freguesia da Estrela
(Foto: Sérgio Dias|NT do DPC)

O Largo Vitorino Damásio ( na freguesia da Estrela ), na confluência da Avenida Dom Carlos I e o Largo de Santos, nasceu de remodelações urbanísticas na zona que se espelharam no Edital municipal de 17/06/1947, tendo o troço da Rua Vasco da Gama com os prédios com os nºs 1 a 51 e 24 a 66 passado a ser o Largo em homenagem ao engenheiro que veio para Lisboa concretizar o Aterro da Boa Vista. Este Largo que até  1787 tinha o seu lado sul parcialmente sob a linha de água resulta das obras do Aterro.

O Aterro era uma ideia que pairava pelo menos desde o reinado de D. João V mas as obras para a sua construção apenas foram decididas após o surto de cólera morbus que grassou na Lisboa de 1857, como medida preventiva contra novos focos de epidemia e assim, em 1858,  o eng.º Vitorino Damásio foi encarregado de proceder ao aterro da margem, desde o Boqueirão da Moeda até à praia de Santos, com os trabalhos executados pela empresa Lucotte. Em  1859, rasgou-se também a Calçada de Santos (hoje, Calçada Ribeiro Santos) para ligar o Aterro à Rua das Janelas Verdes. O Aterro ficou concluído no mesmo ano – 1867 – da abolição da pena de morte mas em agosto. Foram ainda demolidas habitações entre a Praça D. Luís e a Rua das Janelas Verdes para a construção de um paredão que constituiu o 1º acesso ao troço inicial do Aterro e que mais tarde, em  13 de setembro de 1878,  recebeu o nome de Rua 24 de Julho.

A partir de 1881 operam-se ainda mais transformações neste espaço urbano. São abertas a Rua Dom Carlos I (hoje Avenida) e a Rua Vasco da Gama (onde hoje encontramos o Largo de Santos e o Largo Vitorino Damásio). Em 1887 e 1888 é também alargada a Rua Nova do Cais do Tojo (antes denominada Travessa Nova do Cais do Tojo), à qual o Edital municipal de 8 de junho de 1889 retirou a partícula «nova», tal como fez à Travessa Nova do Cais do Tojo (antes Travessa do Chafariz do Cais do Tojo).

José Vitorino Damásio (Feira/02.11.1807 – 19.10.1875/Lisboa), licenciado em Matemática e Filosofia desde 1837 e engenheiro do Conselho Superior de Obras Públicas e Minas desde 1852, foi escolhido para dirigir as obras do Aterro, tendo depois também desempenhado o cargo de Reitor do Instituto Industrial (1853), bem como de presidente da administração do Caminho-de-Ferro do Leste e diretor da Companhia das Águas (ambos em 1858), e ainda, de Diretor-Geral dos Telégrafos (1864).

Vitorino Damásio fora Lente da Academia Politécnica do Porto e engenheiro das Obras Públicas desse mesmo Distrito, tendo sido pioneiro na utilização do processo de cilindragem e construído a 1ª draga a vapor portuguesa, para além de, com Faria de Guimarães e Silva Guimarães, ter fundado a Fundição do Bolhão, onde se fabricou a primeira louça estanhada nacional, estando também em 1852 na criação da Associação Industrial Portuense. Ainda estudante, Vitorino Damásio alistara-se no Batalhão Académico dos exércitos liberais, tendo chegado a General de Brigada, condecorado com a Torre e Espada pelo seu comportamento durante o cerco do Porto.

O Largo Vitorino Damásio, a Rua do Cais do Tojo e a Travessa do Tojo
(Planta: Sérgio Dias|NT do DPC)

Toponomenclatura da água: os Cais, os Boqueirões e o Regueirão de Lisboa

Cais da Lingueta – Freguesia de Santa Maria Maior
(Foto: Artur Matos)

Lisboa, como cidade edificada frente ao Tejo, tem toponomenclatura ligada ao rio nas suas freguesias ribeirinhas: os Cais, os Boqueirões e os Regueirões.

A cidade tem ainda 6 Cais. Na freguesia da Misericórdia, temos o Cais do Sodré, sobre o qual os olisipógrafos divergem quanto à origem. Júlio de Castilho aponta uma família Sodré Pereira Tibau, da qual dois membros, António e Duarte, foram proprietários de prédios naquela zona. Silva Túlio defende ser de Vicente Sodré, descendente do inglês Fradique Sodré, que ali edificou grandes imóveis e ajudou a fazer a obra do cais, opinião que Gomes de Brito também segue. E Norberto de Araújo quer que António, Duarte e Vicente sejam descendentes de Fradique Sodré, um inglês que passara em Portugal no tempo de D. Afonso V.

Freguesia de Santa Maria Maior – Placa Tipo I
(Foto: Artur Matos)

Cais da Lingueta, na freguesia de Santa Maria Maior, liga a Rua do Jardim do Tabaco à Avenida Infante Dom Henrique e fixa na memória de Lisboa o antigo Cais do tempo em que o mar aqui chegava. Refira-se ainda que lingueta é o nome dado à ladeira ou rampa ao pé da qual se arrima a embarcação para receber ou despejar gente nos embarcadouros. Esta artéria teve vários topónimos e até diferentes toponomenclaturas: Boqueirão da Lingueta num parecer municipal sobre a remoção de obstáculos que pudessem impedir a Procissão do Triunfo de 6 de abril de 1875, Travessa do Cais da Lingueta numa planta de Augusto César dos Santos referente à zona do Largo do Chafariz de Dentro datada de 1894 e, nesse mesmo ano, como Rua Cais da Lingueta num documento da autoria do mesmo funcionário municipal para implantação de uma barraca de venda de refrescos. Com a criação da Comissão Municipal de Toponímia em 1943 que reviu todas as denominações toponímicas de Lisboa foi dado parecer favorável à fixação de Cais da Lingueta, na reunião de 17 de outubro de 1944.

Os outros quatro estão no Parque das Nações, herdados da Expo 98 e oficializados pelo Edital de 16/09/2009: o Cais das Naus  junto à Praça do Tejo, a evocar a denominação genérica dada a navios de grande porte, usados em viagens de grande percurso; o Cais do Olival junto ao Passeio dos Heróis do Mar; o Cais dos Argonautas, que vai do Passeio de Ulisses ao Cais Português e refere os tripulantes da nau Argo  que na mitologia grega foram até à Cólquida em busca do Velo de Ouro; e o Cais Português  que é o cais da doca que abre entre o Passeio das Tágides e o Passeio de Neptuno.

Lisboa comporta ainda mais 5 Ruas que fixaram Cais nos seus topónimos : a Rua do Cais da Alfândega Velha (Belém), a Rua do Cais de Alcântara ( Estrela ), a Rua do Cais do Tojo ( Estrela e Misericórdia), a Rua do Cais de Santarém ( Santa Maria Maior ) e a Rua do Cais das Naus ( Parque das Nações ).

Boqueirão da Ponta da Lama – Freguesia de Santa Maria Maior
(Foto: Artur Matos)

Um Boqueirão é uma rua virada ao mar ou ao rio e em Lisboa ainda permanecem 4 Boqueirões.

Na freguesia de Santa Maria Maior são dois: o Boqueirão da Ponte da Lama a ligar Rua do Jardim do Tabaco à Avenida Infante Dom Henrique e o Boqueirão da Praia da Galé que também une a Rua do Jardim do Tabaco à Avenida do Infante D. Henriques, guardando a memória da praia que então ali se faria no Tejo. Os outros dois pertencem à freguesia da Misericórdia: o Boqueirão do Duro que liga a Avenida 24 de Julho ao Largo do Conde Barão e que segundo Pastor de Macedo «Estende-se no chão vizinho ao antigo Cais do Tojo e no sítio da velha marinha da Boa Vista. Segundo verificámos em vários processos de emprazamentos, da freguesia de Santos, o boqueirão do Duro só aparece com este nome depois do incêncio que houve no Cais do Tojo em 1821»; e o Boqueirão dos Ferreiros, que liga a Avenida 24 de Julho à Rua da Boavista.

E o único Regueirão lisboeta é o dos Anjos, numa freguesia não ribeirinha, a de Arroios. Contudo, a ligação faz todo o sentido ao verificarmos que Regueirão é o aumentativo de regueiro ou regueira, logo é um rego grande ou um regato maior e Arroio significa uma pequena corrente de água, um regato, pelo que Arroios é a freguesia dos regatos. Segundo Norberto de Araújo, o Regueirão dos Anjos que liga a Avenida Almirante Reis à Rua Frei Francisco Foreiro, é anterior à própria Rua dos Anjos e «foi vale natural, onde depois de correr água, nos séculos velhos, correu o trânsito». Refira-se finalmente que nos anos oitenta, a escassez de arruamentos fez com se usasse o troço superior do Regueirão dos Anjos para homenagear uma personalidade de apelido Ribeiro: a Rua Francisco Ribeiro (Ribeirinho), atribuída pelo Edital de 24 de abril de 1986.

Freguesia de Arroios – Placa Tipo II
(Foto: Mário Marzagão)