Via, villa agrícola, necrópole e santuário romanos em Poço de Cortes

Entres as freguesias de Olivais e Marvila, mais especificamente na zona de Chelas, nas proximidades da Azinhaga do Poço de Cortes, foram encontrados vestígios romanos de uma via, bem como de uma villa agrícola com necrópole e um pequeno santuário rural, do séc.II e III.

Na época romana, Chelas ficava no agers de Olisipo. A posição estratégia da cidade romana junto ao largo estuário do mais extenso rio da Península Ibérica, contribuiu para o seu desenvolvimento económico. Numa das vias romanas de Olisipo, conforme já menciona A. Vieira da Silva em 1944, estava um marco miliário «encravado numa parede da igreja do mosteiro de Chelas». Neste itinerário de Lisboa a Santarém, pela margem norte do Tejo, a primeira milha situava-se, provavelmente, junto à Calçada da Cruz da Pedra, de onde prosseguiria para a Estrada de Chelas, tocando depois em Poço de Cortes, onde se regista a necrópole e o que parece ser um pequeno santuário rural, continuando para Sacavém, talvez local de uma mutatio (estação de  paragem e muda, indispensável ao bom funcionamento das vias romanas).

É também no sítio de Poço de Cortes, a cerca de 1400 metros a nordeste da Quinta da Bela Vista, que quando em junho e julho de 1944 se procedia à construção de uma avenida de ligação do Aeroporto com o Poço do Bispo –  justamente no sítio onde já no séc. XVII havia aparecido uma lápide funerária romana que se encontraram mais vestígios romanos. Sobre estas descobertas de Poço de Cortes, logo em 1944, o Engº Vieira da Silva publicou na Revista Municipal nº 20-21 o artigo «Uma estação lusitano-romana no sítio de Poço de Côrtes», revelando a existência de uma cripta funerária de forma circular, com 9, 60 metros de diâmetro, com pilares que pareciam sustentar a cobertura, para além de ossos humanos, restos de cerâmicas e três pequenas aras e um columbário (estes 4 últimos achados foram em 8 de julho para o jardim do Palácio Galveias), assim como uma urna cenerária de calcário, em formato de meio ovo, que em 21 de julho também seguiu para o jardim do Galveias. O engº Vieira da Silva defendeu que este monumento funerário seria neolítico e teria sido reaproveitado pelos romanos.

Ainda no mesmo ano de 1944 mas na sua Epigrafia de Olisipo, A. Vieira da Silva refere que «conjecturou Borges de Figueiredo que teve o lugar de Chelas por início uma casa de campo ou vila dum rico cidadão de Olisipo, pertencente à tribu Galéria, com o nome de Júlio.»

As aras encontradas em Poço de Cortes

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A exploração rural da Rua do Passadiço, fora de portas de Lisboa Romana

Rossio nº 3, maio 2014, in Alexandre Sarrazola, «Rua do Passadiço, 26 – Olisipo e o seu termo»

Na primavera de 2011, nas obras de reabilitação do prédio da Rua do Passadiço n.º 26, foram encontrados vestígios de uma exploração rural romana, no suburbio de Olisipo – a cerca de 1 km a noroeste para fora da urbe-, sendo de recordar que já a necrópole da Praça da Figueira se situava a noroeste do limite urbano do centro (pomerium) da Lisboa Romana.

O perímetro urbano da cidade romana seria definido por uma muralha fundacional cujos limites são ainda difíceis de entrever rigorosamente no período alto-imperial. Os limites prováveis, segundo alguns autores, serão, já em época medieval, a zona posteriormente correspondente à Cerca Velha, na área do Hotel Eurostar Museum na Rua do Cais de Santarém, a sul, o Largo da Madalena/ Rua das Pedras Negras, a Oeste, as Termas dos Cássios, a Norte e, eventualmente, a zona das Portas do Sol, a Oriente.

Na Rua do Passadiço nº 26 encontrou-se uma diacronia de uma exploração rural em 5 fases, datável entre os séculos I e IV d. C. A primeira fase, do séc. I, seria de carácter industrial, dada a presença de cinzas, escórias e cerâmica de construção. A segunda, dos sécs. I-II, revelou um cenário doméstico de relevo sócio-económico, diferenciado pelos pavimentos em argamassa de cal. A terceira, também nos sécs. I-II, é um hiato de tempo que corresponde ao abandono do local que antecede a sua reorganização arquitetónica subsequente e mostra que neste local existiu um ritmo de ocupação de curtos espaços de tempo. A quarta fase, com uma qualidade de construção inferior, encontrou um espaço de cozinha de um cenário doméstico, também nos sécs. I-II. A quinta fase é a do abandono do local que ocorre no séc. IV, no Baixo Império, com restos de ânforas norte-africanas dos séculos III-IV.

No decurso do processo de escavação, foram ainda descobertas as ossadas do enterramento de um indivíduo,  provavelmente um recém-nascido, enquadrado numa fase de abandono do sítio.

A Rua do Passadiço, no século XVIII, ainda por entre as hortas da cidade, era a principal via de saída da urbe para norte.

Rossio nº 3, maio 2014, in Alexandre Sarrazola, «Rua do Passadiço, 26 – Olisipo e o seu termo»

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O fundeadouro romano da Praça D. Luís I

Espólio em exposição no parque de estacionamento da Praça Dom Luís I

A construção de um parque de estacionamento subterrâneo na Praça Dom Luís I, em 2013, evidenciou um fundeadouro romano, com uma cronologia entre o séc. I e o séc. V, época em que aquele local era uma baía no rio Tejo.

No decorrer das obras foi identificada uma antiga área de leito do rio, onde os barcos de época romana fundeavam. Debaixo
 de uma enorme estrutura de madeira dos inícios do século XVIII – utilizada como estaleiro naval-, foi encontrada uma quantidade imensa de restos de cerâmica romana, do século I a.C. até ao século V, entre os quais meia centena de ânforas para exportação do preparado de peixe produzido em tanques – como aconteceu na Rua dos BacalhoeirosCasa dos Bicos, na Rua dos CorreeirosNARC ou na Rua Bartolomeu Dias, em Belém -, bem como cerâmicas importadas de Espanha e de Itália. Ao longo de cinco séculos foi ali que os navios romanos estacionaram, para passarem as mercadorias para embarcações mais pequenas que as transportavam até à costa. Foi também encontrada uma grande peça, com cerca de 8,5 metros de comprimento, que se concluiu ser a a primeira madeira de navio inequivocamente romana encontrada em Lisboa.

Este fundeadouro estava fora dos limites da cidade, talvez servindo de apoio à indústria de preparados de peixe, também ela colocada na periferia de Felicitas Iulia Olisipo. Para visualizar com referências dos nossos dias existiria uma pequena baía entre o Jardim de Santos e a Rua do Alecrim, assim como estava presente um esteiro junto à Avenida Dom Carlos I, gerando uma zona de águas calmas, apropriada à fundeação de navios, excepto os de grande calado.

Mencione-se que estes vestígios teriam sido provavelmente destruídos, não fosse a estrutura de madeira que no séc. XVIII foi assente sobre eles e os protegeu do maremoto de 1775 e da implantação do Aterro da Boavista no século XIX.

O parque de estacionamento inaugurado em 2014, incluiu um programa museográfico que explica esta memória e que expõe alguns dos artefactos exumados, assim como reproduções, com textos explicativos, nos patamares das escadas de acesso aos pisos subterrâneos. À medida que se vai descendo mais se recua no tempo. Cada piso do parque distingue-se não só por uma cor específica, mas também por um símbolo gráfico, icónico, do período correspondente. Há pelo meio um piso em que é a própria atividade arqueológica que é comemorada.

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Complexo de preparado de peixe romano no Hotel do Governador da Torre de Belém, na Rua Bartolomeu Dias

Em Belém, no nº 117 da Rua Bartolomeu Dias, as obras na Casa do Governador da Torre de Belém para criar o Hotel NAU Palácio do Governador, conduziram à descoberta de uma grande unidade de preparação de conservas de peixe romana, provavelmente dos séculos I d.C. a V d.C.

O Hotel NAU – Palácio do Governador, unidade hoteleira de cinco estrelas, apresenta na sua entrada principal, ao nível do pavimento, um importante conjunto de cetárias de dimensões diversas. Aqui funcionou uma unidade romana de transformação de pescado, de grandes dimensões, presumindo-se que o restante complexo fabril permaneça oculto no subsolo. Supõe-se que na época da sua laboração produziria o suficiente para encher mais de 15 mil ânforas, que dali partiriam rumo aos mais diversos pontos da Europa.

Este complexo com uma área total de 1525,08 m2, numa área periférica à cidade de Olisipo, terá sido edificado em uma única fase de construção, numa planta retangular, com um pátio central em torno do qual se organizavam os tanques para a fermentação dos preparados de peixes (as cetárias, tendo sido identificadas 32 cetárias, mas seriam muitas mais) e entre o pátio e a fiada principal de tanques havia um corredor de circulação dos trabalhadores, no qual se identificaram tanques de menores dimensões, provavelmente usados  para armazenamento de alguns dos ingredientes principais, bem como estruturas circulares relacionadas com a limpeza da área de produção. Sabe-se também que a petinga representava 98% dos peixes usados neste complexo conserveiro.

A exploração dos recursos marinhos, a produção de preparados de peixe e sua exportação, seria uma das mais relevantes atividades económicas de Olisipo. Os preparados de peixe eram não só muito apreciados como fundamentais na dieta alimentar, particularmente para os contingentes militares espalhados pelo Império Romano.

A identificação do sítio resultou de trabalhos arqueológicos decorrentes da construção do hotel e em consequência da Casa do Governador da Torre de Belém ser um imóvel em vias de classificação, situado na Zona Especial de Proteção da Torre de Belém e do Mosteiro dos Jerónimos, decorrendo desse estatuto a necessidade de se realizarem sondagens de diagnóstico para determinar o potencial arqueológico da área.  Este edifício que servia de residência ao governador da Torre de Belém – quer fosse residência ou apenas residência-oficial – terá sido mandado construir em 1519 por D. Gaspar de Paiva, o primeiro capitão-governador da Torre de Belém, em terrenos aforados aos frades jerónimos e a sua construção aproveitou as estruturas do complexo conserveiro como alicerces do palácio.

(Foto: ERA no artigo de Carlos Fabião, Iola Filipe, Mª Isabel dias, Sónia Gabriel, Mª Manuela Coelho (2008) «Projecto A indústria de recursos haliêuticos no período romano: a fábrica da Casa do Governador da Torres de Belém, o estuário do Tejo e a fachada atlântica» In Apontamentos de Arqueologia e Património 1/2008)

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As Termas dos Cássios na Rua das Pedras Negras

A. Vieira da Silva, Epigrafia de Olisipo, 1944

No nº 26 da Rua das Pedras Negras, atualmente Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna, estão guardadas as ruínas das Termas dos Cássios (Thermae Cassiorum).

Este balneário público romano dos finais do séc. I d.C. – séc. II d.C., pelo menos, conhecido como Termas dos Cássios, terá permanecido em funcionamento até ao século IV d.C., segundo a arqueóloga Lídia Fernandes, diretora do Teatro Romano – Museu de Lisboa, que ainda aponta que « a manutenção deste edifício por cerca de três séculos — aceitando a edificação deste complexo termal em meados do século I a.C. — pressupõe uma obra grandiosa, com uma implantação física largamente favorável, aproveitando a quebra no terreno, em sentido nascente/poente, como acontece no teatro, as Thermae Cassiorum terão marcado a fisionomia da cidade por longo tempo, a par do teatro romano que pontuava a colina e marcaria a paisagem urbana. Ambos, em utilização num tempo longo, terão desempenhado bem o seu papel de símbolos da romanidade.»

A existência deste balneário público romano era conhecida através de um manuscrito de 17 de maio de 1791, de D. Tomás Caetano de Bem, que relata o seu aparecimento em 1771 durante as obras de construção do atual Palácio dos Condes de Penafiel, e transcreve uma inscrição latina do ano de 336 d.C., que estaria pintada a vermelho numa parede, para comemorar as suas obras de reconstrução, que traduzida para português é, segundo José d’Encarnação «Termas dos Cássios. Reconstruídas desde os alicerces, a mandado de Numério Albano, varão muito ilustre, governador da província da Lusitânia, sendo encarregado Aurélio Firmo, no ano em que foram cônsules Nepociano e Facundo». 

Entre 1991 e 1998, foi feita uma intervenção arqueológica no local, através de uma equipa de arqueólogos da CML, em quarteirão contíguo- Rua das Pedras Negras n.os 22 –28 e Rua de São Mamede n.º 23 – que comprovou a existência das termas sob o edifício pombalino e levou a concluir da grande extensão que este edifício ocuparia, possivelmente, dois quarteirões pombalinos. No local foram detetados também vestígios anteriores, da Idade do Ferro e posteriores, da Antiguidade Tardia, Época Medieval Islâmica, Cristã e Época Moderna.

De acordo com José D´Encarnação, da Universidade de Coimbra, como todas as cidades romanas, Olisipo possuía uma praça pública administrativa, o fórum – espaço que os investigadores têm proposto localizar-se ora na zona da e do Largo de Santo António, ora na área do Largo da Madalena ou do Largo dos Lóios– onde se encontravam os principais edifícios públicos administrativos e religiosos. Nas proximidades ficavam outros edifícios públicos, como o Teatro e os banhos, conhecidos como Termas dos Cássios. Nesta malha urbana  juntavam-se as residências privadas, as lojas e outros equipamentos públicos. Este investigador considera ainda que «No panorama do ocidente lusitano o relevo político de Olisipo é prevalente como demonstram a precocidade do estabelecimento do bispado ou a profunda reforma destas Termas dos Cássios em 336 d.C., a mando do praeses provincial, testemunhada por epígrafe.»

Este testemunho da cidade de Felicitas Iulia Olisipo, é hoje é um espaço devoluto, sem qualquer tratamento patrimonial, esperando que num futuro próximo seja possível a sua musealização.

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A lixeira da Rua dos Remédios, com triagem para reciclagem

SILVA, R. B. da (2015) – O contexto alto-imperial da Rua dos Remédios (Alfama – Santa Maria Maior, Lisboa): vidros, cerâmicas e análise contextual. In José Carlos Quaresma e João António Marques (coord.) Contextos Estratigráficos na Lusitânia (do Alto Império à Antiguidade Tardia). Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses.Monografias da AAP. N.º 1, p. 41-67.

Na Rua dos Remédios, que na época do séc. I d.C. era uma zona suburbana oriental da Olisipo romana, foi encontrada uma lixeira com vestígios de prévia triagem de detritos para reciclagem, que pode ser de uma data próxima  de 45 a 50 d. C.

De acordo como arqueólogo Rodrigo Banha, este contexto de acumulação de detritos escavado pela equipa que integrava também Cristina Nozes e Pedro Miranda, em Alfama, num antigo saguão existente entre a lateral oeste da Ermida de N.ª Senhora dos Remédios ( o tardoz do prédio com os n.ºs 7 -9 da Rua dos Remédios e o do edifício com o n.º 12 do Beco do Espírito Santo), data do principado de Cláudio, de cerca de 45-50 d.C., mesmo se alguns elementos cobrem um espectro temporal mais amplo. O arqueólogo justifica a datação afirmando que «O contexto da Rua dos Remédios constitui um repositório quantitativamente rico e diversificado de elementos vasculares vítreos e metálicos a uso até à época de Cláudio».

A amostra recolhida é um conjunto de 223 elementos cerâmicos e 5 vítreos, onde se destaca um amplo conjunto de lucernas itálicas e béticas (sul de Espanha), ânforas, almofarizes, pequenos potes, pucarinhos asados, tigelas, jarros, uma estatueta em terracota e pesos de tear, sendo 40% de loiça para preparação e conservação de alimentos e 11 % de ânforas. Revela também o conservadorismo do hábito olisiponense de uso de cerâmica de mesa escura: a «cerâmica cinzenta». Sobre as ânforas, para conservação e transporte de vinho, óleos e peixe, refira-se que se podem identificar como zonas de fabrico a bacia do Guadalquivir, as áreas do Tejo/Sado mas, sobretudo, a Baía de Cádis.

O contexto forneceu dados para traçar a economia antiga, pelas conexões do local do achado, como sítio de consumo, com os sítios de origem do aprovisionamento e as redes existentes que permitiram os fluxos : «o contexto da Rua dos Remédios desenha um quadro com razoável correspondência noutros pontos arqueológicos de Olisipo, onde se notam as fortes conexões com a Península Itálica e, a um nível superior, com a vizinha Bética, e, por fim, uma elevada competência das artesanias e/ou manufacturas oleiras regionais/locais no abastecimento à cidade da Foz do Tejo, todavia circunscritas a determinados segmentos de mercado.»

Por outro lado, este contexto de lixeira pode traçar uma prática de separação de resíduos que poderá ser vista como moderna. Em várias fossas detríticas em áreas suburbanas olisiponenses, de dimensões variáveis, «reiteradamente se constata que o vidro é escasso, o metal está ausente ou é raro, os materiais de construção pouco numerosos ou ausentes, e a representação faunística francamente discreta e seleccionada», conjunto de atributos que são um indicador sugestivo de uma prática de transporte dos detritos sólidos urbanos, previamente triados – nomeadamente para se proceder à reciclagem de vidro e de metal-, a partir das áreas residenciais para o exterior, por modo próprio ou contratualizado. Na Rua dos Remédios, a amostra de 34 elementos da mesma classe cerâmica implicaria ser uma lixeira de três habitações, no mínimo.

Nesta zona oriental de Olisipo, conhece-se uma outra pequena fossa não muito distante, na Rua da Regueira, também com cerâmica vitrificada, almofarizes itálicos ou «ânforas-de-mesa» que parece indiciar um perfil sócio-económico mais elevado do que o que deu origem aos contextos romanos da Praça da Figueira, podendo pensar-se que as peças domésticas tiveram um uso superior a 3 anos e extensível até 15 anos.

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A inédita ocupação romana na Rua Vítor Cordon e Rua do Ferragial

As obras do Edifício Córdon 31 permitiram a descoberta no então Subúrbio Ocidental de Felicias Iulia Olisipo, no arco cronológico dos séculos I e II d. C. – ou quando muito, inícios do III d. C.-, de acordo com a investigação dos materiais exumados, de uma possível Domus romana e talvez umas termas ,que lança novos dados  sobre as dinâmicas de ocupação da cidade em época romana.

Este edifício da Rua Vítor Cordon nº 29-33  e Rua do Ferragial nº 6-10A, insere-se num quarteirão composto por três imóveis, edificado em 1801, confinados entre o beco da Rua dos Duques de Bragança, a Rua do Ferragial, a Calçada do Ferragial e a Rua Vítor Cordon.

Em João PIMENTA e António VALONGO (2017), « Os achados arqueológicos». In 31 Cordon Lisboa. Um edifício com história, Eon. Industrias Criativas, p. 74-117

A partir de achados dispersos, foi intuída a existência de ocupação na margem direita do antigo Esteiro da Baixa, junto ao sopé da colina oriental do Chiado/São Francisco. A presença de um nível de ocupação romano, foi inicialmente detetada na escavação do nº 10 da Rua do Ferragial mas a significativa ocupação romana, materializada em estruturas, foi encontrada no nº 6: três estruturas de época romana correspondentes a um edifício. Uma abside semicircular e a evidência de uma canalização constituída por lateres, aparentemente destinada ao escoamento de águas, leva a supor estarmos perante uma área termal.

Parecem estar presentes 3 fases. Uma primeira construção em meados do século I d. C.., com presença de ânforas vinárias itálicas, parcialmente desmantelada e reaproveitada pela sobreposição de um novo edifício, praticamente reduzido aos alicerces, na segunda fase em que é edificada a estrutura de abside, de finais do século II d. C. a inícios do III d. C. , para escoamento de águas e onde se encontrou um abundante conjunto de cerâmica comum, o que faz supor tratar-se de um edifício termal,. Na última fase, é regularizada a área externa da abside e sobre esta estrutura é construído um muro paralelo à parede, com um técnica distinta das anteriores, provavelmente de meados do século II a inícios do III d. C. Refira-se ainda que a presença de estuques pintados e  algumas placas de mármore de revestimento permitem supor algum cuidado decorativo que faz formular a questão: estaremos perante uma Domus suburbana?…

Nesta zona da cidade já A. Vieira da Silva, em 1945, referiu uma epígrafe funerária, registada em 1601, que se encontrava encastrada na fachada meridional do Palácio dos Duques de Bragança antes do terramoto de 1755, na atual Rua Vítor Cordon, tendo feito a seguinte leitura: «Monumento aos deuses Manes. A Póstumio Vicílio (ou Vicilião) [falecido aos] 35 anos de idade. Postúmio Floriano mandou erigir [esta memória] a seu irmão estremosíssimo». A menção explícita ao seu suporte como um “troço de coluna” sugere tratar-se de uma cupa, morfologia de monumento pétreo comum nos ambientes rurais olisiponenses, mas que parecia ausente da epigrafia funerária urbana de Olisipo.

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Requiescat in pace: a necrópole noroeste de Olisipo na Praça da Figueira

Fases de ocupação da Necrópole Noroeste

No espaço que hoje identificamos como Praça da Figueira funcionou durante quase quatro séculos, do século I ao IV d.C., uma necrópole romana, a maior de Lisboa, que se entenderia até à Encosta de Santana e Elevador do Lavra, regularmente identificada como Necrópole Noroeste de Olisipo.

Aliás, a cronologia do seu uso foi reforçada pelo estudo das 17 lucernas – candeias romanas – recuperadas no local. Esta necrópole era consideravelmente extensa, com uma  área que abrange desde a Praça da Figueira ao Largo de São Domingos, Calçada do Garcia e Encosta de Santana, sendo a Via Norte a sua linha estruturante.

As necrópoles acompanhavam os eixos viários de saída da cidade, como acontece neste caso. Foi ainda identificada uma via perpendicular à Via Norte,  via secundária que serviria mais tarde de acesso ao circo e a outras estruturas. Por outro lado, as necrópoles são também indicadoras dos limites da cidade já que estavam sempre situadas no exterior da área habitada (poemerium) , nas periferias da cidade (suburbia) e a área da Praça da Figueira, tem uma localização periférica face ao perímetro da cidade romana, em sentido estrito.

O arqueólogo Rodrigo Banha coloca a hipótese desta necrópole da Praça da Figueira ter substituído a necrópole encontrada na Rua dos Correeiros – no NARC – , pela razão prática e conforme a mentalidade romana da época de os seus terrenos terem sido entretanto necessários para instalar uma indústria de salga de pescado.

Uma das particularidades da escavação desta necrópole da Praça da Figueira foi a descoberta de um túmulo enterrado de tijolo e argamassa em forma de arca que Rodrigo Banha garante só ter paralelo em Portugal com um encontrado em Tróia, embora de menores dimensões. Foi também achada uma sepultura cujo esqueleto tinha uma moeda de bronze na boca, um ritual funerário comum na época, para permitir ao defunto que pagasse ao barqueiro do rio da morte, Caronte, a travessia para o outro lado. Ainda segundo este arqueólogo, apesar da inumação ser praticada em Olisipo nos finais do século I a.C. e primeiras décadas do I d.C. – como se observa na necrópole da Rua dos Correeiros e nesta Necrópole Noroeste-, aparentemente a prática da incineração era exclusiva no séc. I d.C. É ainda de referir a utilização constante de alguns edifícios funerários até ao século III d.C. Num segundo momento, entre os séculos II e III d.C., ocorre um período de acentuação desta monumentalidade na zona da Praça da Figueira, uma ocorrência que tem lugar nas cidades mais romanizadas do ocidente.

Esta necrópole teve os seus primeiros vestígios descobertos no decorrer das obras de implantação do Metropolitano de Lisboa, no início de fevereiro de 1961 e a partir daí, graças ao trabalho no local de Irisalva Moita, em fevereiro de 1962, depois continuado por Fernando Bandeira Ferreira, sob os auspícios da Junta Nacional da Educação, tendo ela publicado em 1968, na Revista Municipal, «Achados de época romana no sub-solo de Lisboa». Todavia, em abono da extensão desta necrópole, recordamos que já antes haviam surgido sepulturas e epígrafes no Largo de São Domingos (em 1898) e na Calçada do Garcia (em meados do século XIX). Entre 1999 e 2001, no âmbito da construção do parque de estacionamento subterrâneo da Praça da Figueira, é que se procedeu à escavação integral desta área, trabalhos a cargo do Museu da Cidade de Lisboa, dirigida por Rodrigo Banha,  coadjuvado pontualmente por Marina Carvalhinhos. Em 2002 e 2004 surgiram mais sepultadas na Encosta da Santana e, mais tarde, outros núcleos na Rua das Portas de Santo Antão e na Calçada do Lavra.

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O Circo romano sob a Praça Dom Pedro IV

 

Na Praça Dom Pedro IV (vulgarmente conhecida como Rossio), estava localizado o Circo romano, edificado no século II ou, segundo outras opiniões, no princípio do século IV.

Na periferia da cidade de Felicitas Iulia Olisipo, fora dos limites definidos pela Muralha Romana Fundacional, ficariam as construções que aconselhavam uma localização isolada como a indústria conserveira, o circo ou as necrópoles. Aliás, o que se sabe até ao momento aponta para que a necrópole da Praça da Figueira tenha coexistido com o vizinho circo durante um certo período de tempo. De acordo com o arqueólogo Rodrigo Banha, entre o Circo e esta necrópole  – a da Praça da Figueira – passaria uma via de acesso ao edifício lúdico.

Esta estrutura  foi descoberta no decorrer das obras de implantação do Metropolitano de Lisboa, graças aos trabalhos realizados por Irisalva Moita em 1961. Nessa década, surgiu uma estrutura em opus signinum ladeada por um murete, com uma largura total de 6 metros (20 pés romanos) e um comprimento indeterminado uma vez que se prolongava pelo subsolo. Na época, julgou-se que seria uma estrutura viária ou portuária mas são as obras do metropolitano para a expansão da rede, em 1994, que permitiram concluir com rigor ser a spina – o elemento central de um circo romano, bem como nela descobrir um plinto, provavelmente de uma estátua, como era característico, para além de se ter exumado parte da arena.

Circo, via e necrópole, segundo Rodrigo Banha (2005)

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As oficinas de conservas de peixe na Baixa lisboeta

Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos

Felicitas Iulia Olisipo, a que o imperador César Augusto concedeu o estatuto de município de cidadãos romanos (municipium), possuía uma cintura artesanal e manufatureira de salga e conserva de peixe. As oficinas, com os seus pátios e as suas cetárias (tanques), estendiam-se desde a Casa dos Bicos, na Rua dos Bacalhoeiros, até à Rua Augusta, formando o complexo conserveiro da Lisboa Romana.

Fora dos limites definidos pela muralha romana fundacional, na área suburbana de Olisipo, estariam as outras construções cujas funções aconselhavam uma localização isolada como o circo,  as necrópoles que acompanhavam as vias de saída da cidade e as oficinas que tinham uma maior concentração junto ao rio.

Olisipo era um importante centro de transformação de pescado. Na margem esquerda do Tejo, várias olarias fabricavam as ânforas em que eram exportadas as conservas olisiponenses, como na Quinta do Rouxinol (Seixal). Esta indústria de fabrico de preparados piscícolas seria até a principal base da economia da Lisboa Romana, cidade mobilizadora de rotas comerciais como da captura de pescado, produção de sal, assim como do transporte de peixe, vinho e azeite para todo o mundo romano.

Na Lisboa de hoje, localizamos as oficinas de  transformação de pescado em conservas e molhos de peixe perto do Tejo, na Rua dos Bacalhoeiros (Núcleo Museológico da Casa dos Bicos, classificado como Monumento Nacional); na antiga margem oriental do esteiro do Tejo; duas unidades distintas na Rua Augusta; várias outras na Rua dos Correeiros (Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros nº 21, classificado como Monumento Nacional ), onde para além das oficinas se encontraram umas pequenas termas e parte de uma via romana; no cruzamento da Rua de São Nicolau com a Rua dos Douradores; duas unidades fabris na Rua dos Fanqueiros no nº 51-57 e nº 72- 76, bem como na Rua da Conceição. Segundo o arqueólogo Rodrigo B. da Silva, seria forte a tendência ortogonal no desenho urbanístico alto-imperial desta área suburbana, cobrindo um amplo espaço equivalente à parte oriental e setentrional do Vale da Baixa e que, em função dos dados já publicados da Praça da Figueira, poderá remontar ao principado de Cláudio, pelo menos. Também Jacinta Bugalhão constata que muitas unidades de processamento de preparados de peixe prosseguem a sua laboração adentro do século IV d.C.

Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros

Textos: © CML | DPC | NT e CAL – Centro de Arqueologia de Lisboa | 2019

Fotos: © CML | DPC | José Vicente |2018