Foi na Travessa da Palha
Que o meu amante, um canalha,
Fez sangrar meu coração:
Trazendo ao lado outra amante
Vinha a gingar petulante
Em ar de provocação.
Na Taberna do Friagem
Entre muita fadistagem
Enfrentei os seus rancores,
Porque a mulher que trazia
Com certeza não valia
Nem sombra do meu amor.
São estes os versos iniciais de Foi na Travessa da Palha, fado com letra de Gabriel de Oliveira e música de Frederico de Brito, que recorda a Taberna ou Adega do Friagem na artéria que dá título ao tema e que hoje conhecemos como a Rua do Correeiros da Baixa lisboeta.
Foi na Travessa da Palha terá sido originalmente um fado intitulado Cena fadista criado para o repertório de Maria Alice, algures entre 1928 e a década de 40, quando esta fadista terminou a carreira por se ter casado com Valentim de Carvalho. Certo é que o fado ficou famoso na interpretação de Lucília do Carmo, em 1958, já com o título mudado para Foi na Travessa da Palha e assim foi passando pelas vozes de Augusta Ermida, Cidália Moreira, Lenita Gentil e Diamantina, para além de no filme-documentário Fados (2007), do espanhol Carlos Saura, o tema surgir na voz de Lila Downs.
Quanto à história do arruamento sabemos que a Travessa da Palha é uma denominação popular anterior ao Terramoto de 1755, que resistiu na memória da população alfacinha pelo menos até ao século XX, para designar a Rua dos Correeiros, topónimo oficial desde 1760, em resultado do primeiro documento legal de toponímia que houve na cidade de Lisboa: a Portaria pombalina de 5 de novembro de 1760 que atribuiu denominações às ruas da Baixa lisboeta, entre a Praça do Comércio e a Praça do Rossio.
Conforme Norberto de Araújo escreveu nas suas Peregrinações em Lisboa, em 1939, «Neste troço da Rua de Santa Justa, entre as Ruas dos Correeiros (vulgo Travessa da Palha) e a Rua da Prata, passava antes de 1755 em terminus a formosa Rua das Arcas, o Largo da Palha, do qual nascia a Rua da Palha que ia desembocar na Rua da Betesga, velha. A Rua dos Correeiros, que foi destinada aos ofícios dos seleiros – ainda hoje subsistentes – e que se chamou também Correaria Nova, e Nova dos Correeiros, deve a sua designação oral, sobrevivente, à vizinhança com o Largo e Praça da Palha.»
Recordemos que no séc. XIX, o século de nascimento do fado, era comum usar-se a denominação oficial e a popular em muitos topónimos da Baixa lisboeta. Por exemplo, em 1830 a Gazeta de Lisboa publica um anúncio em que se pode ler «vendem-se duas courellas de terra, nos campos de Azambuja; na rua dos Corrieiros, vulgo travessa da Palha, nº 79 – 1º andar». Também Francisco Inácio dos Santos Cruz, na sua obra Da prostituição na cidade de Lisboa, publicada em 1841, refere a «Rua dos Correeiros (Travessa da Palha)» a propósito de ser preferida pelas «prostitutas de 2ª ordem», tal como a «Rua dos Sapateiros (Arco do Bandeira)».
Finalmente, importa referir que Palha foi um topónimo usado em mais artérias lisboetas até ao século XIX. No princípio do séc. XVII existia a Rua da Palha ou Rua da Palha de Santos que o Edital do Governo Civil de Lisboa de 1 de setembro de 1859 incorporou na Rua do Guarda-Mor, ficando assim esta artéria da Madragoa a unir a Rua das Trinas à Rua de São João da Mata. Em 1846 ainda aparece registado o Boqueirão da Palha da Boavista, em frente ao Largo do Conde de Barão; em 1858 também ainda surge um Beco da Palha na Ribeira Velha, ao pé do edifício da Alfândega e, na Junqueira, documentos municipais de 1887 também registam uma Travessa da Palha.