O Beco e a Travessa da Ferrugenta

A Travessa da Ferrugenta - Freguesia da Ajuda (Foto: Sérgio Dias)

A Travessa da Ferrugenta – Freguesia da Ajuda
(Foto: Sérgio Dias)

Na Ajuda, um Beco e uma Travessa colocam uma mulher, Ferrugenta de alcunha, na toponímia desta Freguesia.

A Travessa foi herdada do Concelho de Belém após a sua extinção, em 18 de junho de 1885, e que a Câmara Municipal de Lisboa oficializou 31 anos depois, pelo Edital de 26/09/1916, embora num documento municipal de 10/11/1897 sobre a canalização de esgoto na zona da Ajuda já apareça mencionada como Travessa da Ferrugenta. O Beco pode ter surgido depois e assimilado a mesma denominação por proximidade.

De acordo com Teresa Sancha Pereira, na sua comunicação «A Toponímia durante a I República» apresentada nas II Jornadas de Toponímia de Lisboa, a Ferrugenta era uma antiga moradora do local, Leonor Maria, padeira de Sua Majestade, que assim ficou conhecida por ter enviuvado de um homem cujo apelido era Ferrugento. A proximidade destas artérias à Real Barraca de 1755, ao Paço velho (onde em 1777 faleceu D. José I) e depois Palácio da Ajuda (a partir do plano de 1802) também parece ajudar a revelar porque foram aqui fixados estes topónimos.

Se analisarmos os registos paroquiais da Ajuda encontramos três Leonor Maria no final do séc. XVIII : uma que casou em 1798 com João Simões (Livro: 12-C, Folha: 46), outra que casou em 1798 com José Rodrigues (Livro: 12-C, Folha: 68) e uma terceira que em 1799 casou com Joaquim António da Silva (Livro: 12-C, Folha: 96).

Certo é que o topónimo existia como Travessa da Ferrugenta em 1832 já que o jornal  Gazeta de Lisboa de 28 de abril desse ano, publicitou uma arrematação de propriedades da artéria que faz quina para a travessa da Ferrugenta , nº 24 a 27.

Contudo, Appio Sottomayor no seu artigo «Toponímia de Lisboa, essa nossa familiar», publicado na revista Aldraba de 29 de novembro de 2014, defende antes que «Assim, existiu há muito na Ajuda uma loja de ferro-velho. O povo chamava-lhe o ferrugento. Como o proprietário morresse e ficasse a viúva a gerir, a Ferrugenta ganhou foros de personalidade e ainda hoje lá existem a travessa e o beco da Ferrugenta.» E nos registos paroquiais da Ajuda encontramos um Joaquim de Abreu Ferrugento que em 7 de março de 1812 casou com D. Maria Rita (Livro: 13-C, Folha: 344).

Fica-nos a pergunta : seria a Ferrugenta uma padeira ou a herdeira de uma loja de ferro-velho?…

Freguesia da Ajuda (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia da Ajuda
(Planta: Sérgio Dias)

Farinhas e fornos na toponímia de Lisboa

Largo dos Trigueiros - Freguesia de Santa Maria Maior (Foto: Nuno Correia)

Largo dos Trigueiros – Freguesia de Santa Maria Maior
(Foto: Nuno Correia)

O pão como elemento básico da alimentação e os fornos para o cozer marcam presença em inúmeros topónimos da cidade de Lisboa e que perduram nas zonas mais antigas da cidade assim como nas franjas urbanas que se mantiveram essencialmente rurais até ao início do século XX.

Na parte mais antiga da cidade, hoje integrada na Freguesia de Santa Maria Maior, encontramos  o Largo dos Trigueiros, mais o Largo do Terreiro do Trigo, a  Rua do Terreiro do Trigo, as  Escadinhas do Terreiro do Trigo  e a Travessa do Terreiro do Trigo, sendo estes quatros últimos derivados do edifício do Celeiro Público ou Terreiro do Trigo, aqui construído entre 1765 e 1768 sob o traço de Reinaldo Manuel dos Santos, sendo que com este Terreiro do Trigo pombalino, procurava D. José I assegurar «a abundância de pão aos moradores da sua nobre e leal cidade de Lisboa». Mais tarde, o espaço passou a ser o Mercado Central de Produtos Agrícolas até cessar essas funções em 1937 para aí serem instalados serviços alfandegários.

Para a moagem dos cereais, temos topónimos com atafonas e moinhos. Atafona é uma palavra de origem árabe que significa moinho que funciona sem vento nem água mas é antes impulsionado por homens ou por bestas. As artérias que guardaram este nome devem ter tido um engenho destes ou então algum morador do arruamento que fosse atafoneiro, ofício cuja irmandade tinha a invocação de Santo Antão. Em Alfama, subsiste o Beco das Atafonas, já referido em 1712, e junto à Rua das Janelas Verdes, temos a Travessa das Atafonas que perpetua a memória de atafonas por estas paragens e que  segundo Júlio de Castilho seriam do final do século XV . No singular, ainda se regista um Largo e um Beco da Atafona na antiga Freguesia de São Cristóvão e São Lourenço (hoje Santa Maria Maior), sendo que este último, de acordo com Pastor de Macedo, teria sido Rua desde 1694 e até pelo menos 1701 pelo que o Largo só com topónimo atribuído em 1915 deriva o seu nome do Beco. Existe também na Freguesia de São Vicente  um Beco da Mó. Com moinhos encontramos ainda hoje 7 topónimos em zonas altas e ventosas: o Alto dos Moinhos (em São Domingos de Benfica) que apenas um vale o distancia de Monsanto, a Calçada do Moinho de Vento (Freguesias de Arroios e Santo António), a Calçada dos Sete Moinhos ( em Campolide) onde ainda se mantinham alguns no final do séc. XX e a Rua dos Sete Moinhos (Campo de Ourique) pela proximidade à Calçada, a Travessa do Moinho de Vento (Estrela) perto da Rua de Buenos Aires, a Travessa dos Moinhos em Santo Amaro (Alcântara) e Travessa do Moinho Velho na Boa-Hora (Ajuda).

Largo do Peneireiro - Freguesia de Santa maria maior - Placa Tipo I (Foto: Mário Marzagão)

Largo do Peneireiro – Freguesia de Santa Maria Maior – Placa Tipo I
(Foto: Mário Marzagão)

E para escolher os cereais ou as farinhas, ou perpetuar quem vendia peneiras, encontramos ainda no norte lisboeta o Largo das Peneireiras, na zona das antigas quintas da Charneca do séc. XIX , bem como o Largo e o Pátio do Peneireiro em Alfama.

O Beco e a Rua das Farinhas, mais as Escadinhas da Rua das Farinhas são topónimos da Lisboa seiscentista já que Cristóvão de Oliveira no seu Sumário enumera já na Lisboa de 1551 o Beco das Farinhas em Santa Justa e a Rua das Farinhas em S. Lourenço onde ainda hoje as encontramos.

E finalmente nos fornos temos a Travessa do Forno aos Anjos (Freguesia de Arroios), a Travessa do Forno do Maldonado e a Travessa do Forno do Torel que antes foi Beco (ambas na Freguesia de Arroios), e todas dadas pelo Edital do Governo Civil de 01/09/1859, o que denota por um lado, serem topónimos anteriores a esta data e por outro que haveriam em Lisboa várias Travessas do Forno  para haver necessidade de destrinçá-las.

Travessa dos Fornos - Freguesia da Ajuda (Foto: Sérgio Dias)

Travessa dos Fornos – Freguesia da Ajuda
(Foto: Sérgio Dias)

Ainda hoje subsistem mais duas Travessas do Forno: a Travessa do Forno junto à Rua das Portas de Santo Antão ( Freguesia de Santa Maria Maior) e a Travessa dos Fornos na Ajuda, que o Edital municipal de 14/12/1917 reconhece que já  era o «nome porque vulgarmente era conhecida». Assim, é lícito supor que a denominação advém da proximidade à antiga Estrada dos Fornos d’El-Rei. Já numa planta de 1890, anexa a um ofício do engenheiro diretor-geral da CML aparece esta Estrada dos Fornos d’El-Rei, no Rio Seco, e como tal também aparece designada na planta da cidade de 1896, passando a Estrada do Rio Seco na planta de 1911, e pelo edital de 07/08/1911 se torna a Rua Dom João de Castro.

Já os becos são 5 : o Beco do Forno junto do Largo da Severa, o Beco do Forno (a São Paulo) referido no levantamento de 1856 de Filipe Folque, mais o Beco do Forno do Castelo, o Beco do Forno da Galé e o Beco do Forno do Sol junto à Vila Berta, todos com acrescento para aumentar a diferenciação dado pelo Edital do Governo Civil de Lisboa de 01/09/1859.

Por último, lembramos que toponímia lisboeta guarda ainda outra memória deste património português: a Rua da Padaria.

Escadinhas da Rua das Farinhas (Foto; Ana Luísa Alvim)

Escadinhas da Rua das Farinhas
(Foto: Ana Luísa Alvim)

Frutas na Toponímia de Lisboa

Rua Direita da Ameixoeira - Placa Tipo II - Freguesia de Santa Clara (Foto: Sérgio Dias)

Rua Direita da Ameixoeira – Placa Tipo II – Freguesia de Santa Clara
(Foto: Sérgio Dias)

A toponímia de Lisboa perpetua diversas frutas, através dos nomes de árvores de fruta que são memórias rurais da cidade de Lisboa: a ameixoeira, a amendoeira, a cerejeira, a figueira, a laranjeira, o limoeiro e a pereira.  E estas memórias resultam de muitos séculos em que era o povo que dava nomes aos lugares para os identificar distintamente dos outros, até a Portaria de 27/09/1843 pela primeira vez atribuir esta prerrogativa ao Governo Civil, tendo o de Lisboa publicado o 1º edital de matéria toponímica em 1 de setembro de 1859.

A Ameixoeira foi até ao século XX uma freguesia de carácter rural e quando fez o seu brasão (em 1993) integrou nele duas verdes ameixoeiras (também denominadas ameixeiras ou ameixieiras). O topónimo do sítio passou para a Estrada da Ameixoeira (freguesias de Santa Clara e Lumiar) e para a Rua Direita da Ameixoeira (Santa Clara). A Estrada da Ameixoeira une a Rua Alexandre Ferreira ao Largo do Ministro e até 1928, por ser um  lugar retirado, nela se realizaram dezenas de duelos, como o que opôs Afonso Costa ao Conde de Penha Garcia, em 14 de julho de 1908. Já Rua Direita era a designação comum usada para a rua principal de um lugar e assim aconteceu com a Rua Direita da Ameixoeira, que assim já assim era denominada vulgarmente até ser oficializada pelo Edital municipal de 16/06/1928, que procedeu de igual forma para os outros topónimos antigos do lugar como o Largo do Ministro, o Largo do Terreiro, o Beco dos Ferreiros e a Travessa de Santo António.

Contudo, a origem do topónimo Ameixoeira poderá não ser a árvore da ameixa. Sabe-se que em 1147 por altura da reconquista de Lisboa, a Ameixoeira tinha o nome latino de Muchinis. No séc. XIII, aparece como Moyxieira e até ao séc. XVII era conhecida como Mixoeira (derivada de um nome mouro: Mixio ou Mixo), mas também era denominada como Ameijoeira (pela quantidade de ameijoas fósseis no local) e ainda como Funchal (pela tradição de numa batalha entre mouros e cristãos em que estes últimos encontraram uma imagem de Nossa Senhora escondida num funchal).

Com amendoeira Lisboa guarda quatro topónimos: o Beco e a Rua da Amendoeira (Freguesia de Santa Maria Maior), mais o Beco do Outeirinho da Amendoeira (Santa Maria Maior) e o Largo do Outeirinho da Amendoeira (São Vicente).

Luís Pastor de Macedo refere que «Actualmente [década de quarenta do séc. XX], existe apenas um beco com o nome de Amendoeira. Fica na freguesia do Socorro, começando e terminando, depois de fazer uma curva, na rua com o mesmo nome.» Norberto de Araújo aponta as raízes rurais:  «A Amendoeira é uma nesga estreita de casas pequenas e onde, à direita, e a meio, se encontra um quintal, restos silvestres da Mouraria antiga, sobre os quais se debruça um muro que pertence ao pátio do Coleginho.» Serão assim topónimos anteriores ao terramoto de 1755 e tanto mais que as descrições paroquiais de Lisboa referem  «rua da Amendoeyra» na freguesia de Nª Srª do Socorro, «rua da Amendoeira» na «freguezia de S.George» ou «freguezia de S. Jorze», e depois outra vez como rua da Amendoeira na freguesia de Nª Srª do Socorro. Ainda segundo Pastor de Macedo, na Rua da Amendoeira morou no séc. XIX Ana Gertrudes, conhecida pela alcunha da Barbuda, a mãe da Severa. 

O Beco do Outeirinho da Amendoeira, que se desdobra em escadas da Rua do Vigário ao Beco dos Paus, de acordo com Luís Pastor de Macedo, radica em que « O outeiro que no diminutivo originou o nome deste beco, supomos vê-lo num documento do ano de 1465: “… a Johane anes almocreue e assua molher Catarina aluarez moradores em a dicta cidade [de Lisboa] na freguesia santo steuam emprazaromlhes huma casa térrea q elles [os Clérigos Ricos] han hu chamam o outeiro hu esta ho hulmeiro com huu quintall q tem diante e huua palmeira e huua parreira, etc.» Nas plantas da freguesia após a remodelação paroquial de 1780 já aparece em Santo Estêvão «o becco intitullado o Outeiro da Amendoeira».

Já o Largo do Outeirinho da Amendoeira, que vai do Campo de Santa Clara à Cruz de Santa Helena, teria sido a Rua do Arco Pequeno segundo Norberto Araújo: « Sigamos agora por esta rua, que é o princípio do largo do Outeirinho da Amendoeira, antiga do Arco Pequeno, sob o muro do Pátio de S. Vicente; assentou aqui o Postigo do Arcebispo, da muralha de D. Fernando, depois configurado num arco, desaparecido há relativamente poucos anos[em relação à década de quarenta do séc. XX].» 

Calçadinha da Figueira - Freguesia do Lavaodois (Foto: Mário Marzagão)

Calçadinha da Figueira – Freguesia de Santa Maria Maior
(Foto: Mário Marzagão)

Na Freguesia de Carnide, onde ainda sobrevivem alguns dos antigos traços da ruralidade do sítio, encontramos a Azinhaga dos Cerejais e a Azinhaga das Cerejeiras, sendo que a própria categoria de Azinhaga denota a sua origem rural.

Da árvore dos figos, para além da Praça da Figueira e do Poço do Borratém, Lisboa guarda ainda em Alfama a Calçadinha da Figueira, que liga a Calçadinha de São Miguel à Rua Norberto de Araújo, como herança da presença árabe na cidade. No levantamento de 1858 de Filipe Folque a Calçadinha da Figueira aparece identificada como Calçada da Figueira.

No norte da cidade, a Quinta das Laranjeiras de Estêvão Augusto de Castilho, fez nascer o topónimo Laranjeiras cuja referência mais antiga data de 1671 e daí se gerou tanto a Estrada como a Rua das Laranjeiras, sendo que esta última antes do Edital municipal de  19/07/1919 se designava Azinhaga da Ponte Velha.

Já no lado ocidental de Lisboa, na Freguesia da Ajuda, temos uma Rua do Laranjal nascida como tal há quase 100 anos. Primeiro, foi Rua da Paz, a que o Edital municipal de 18 de junho de 1889 acrescentou «à Ajuda» e depois, o Edital municipal de 26 de setembro de 1916 tornou-a Rua do Laranjal.

Travessa da Laranjeira - Freguesia da Misericórdia (Foto: Sérgio Dias)

Travessa da Laranjeira – Freguesia da Misericórdia
(Foto: Sérgio Dias)

E em plena Bica deparamos com a Travessa da Laranjeira, que como a sua paralela Travessa do Sequeiro fixa memórias rurais do local. Pastor de Macedo refere que «O padre Carvalho da Costa, em 1712, dá-lhe o nome de ‘travessa do Laranjeiro’ (…) Supomos porém, que se trata duma gralha tipográfica da ‘Corografia Portuguesa’, depois copiada, irreflectidamente pelo autor do ‘Mapa de Portugal’» e ainda segundo este olisipógrafo foi nesta artéria que nasceu o jornalista Eduardo Fernandes, conhecido como Esculápio.

Já o limoeiro trouxe um Largo e uma Rua do Limoeiro, ambos na freguesia de Santa Maria Maior. Supõe-se que o sítio do Limoeiro  aluda a uma árvore no local mas o Largo do Limoeiro está indubitavelmente ligado a uma cadeia que aí funcionava desde o tempo de  D. João II e cujos cárceres encerraram gente como poeta Correia Garção (em 1771), o poeta Bocage (1797), o pintor Domingos Sequeira (1808) e o escritor Almeida Garrett (1827) mas que desde dezembro de 1979 acolhe as instalações do Centro de Estudos Judiciários.

Finalmente, a Travessa da Pereira, na Freguesia de São Vicente, «Data dos fins do século XVIII (1799) e foi aberta na quinta do Alcaide Fidalgo», de acordo com Pastor de Macedo que ainda acrescenta que « aqui nasceu em 3 de Novembro de 1828 o actor Isidoro e aqui viveu, segundo parece, aí pelos meados do século passado [séc. XIX], o desiquilibrado José Maria Leal de Gusmão , autor do poema Rei só Deus, e que foi um dos excêntricos relacionados por Luiz Augusto Palmeirim. A qualificação que primitivamente deram a esta serventia foi a de rua».

Travessa da Pereira - Freguesia de São Vicente (Planta: Sérgio Dias)

Travessa da Pereira – Freguesia de São Vicente
(Planta: Sérgio Dias)

A Rua Cândido de Figueiredo do Novo Dicionário da Língua Portuguesa

Cândido de Figueiredo em 1925 (Foto: Joshua Benoliel, Arquivo Municipal de Lisboa)

Cândido de Figueiredo em 1925
(Foto: Joshua Benoliel, Arquivo Municipal de Lisboa)

Cândido de Figueiredo, o autor do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, que teve a sua primeira edição em 1899 e múltiplas reedições até à 25ª, enviou para Paul0 Plantier incluir no seu Cozinheiro dos Cozinheiros a receita de «Triunfos do tomate», e teve direito a ser nome de rua lisboeta cerca de sete anos após o seu falecimento.

Com a legenda «Filólogo e Escritor/1846 – 1925», Cândido de Figueiredo passou a topónimo de uma artéria da Freguesia de São Domingos de Benfica identificada como Rua B do projecto aprovado em sessão de 19/04/1928, no então «projectado bairro novo de Benfica», através da publicação do Edital municipal de 31 de março de 1932, acompanhado na Rua A pelo filólogo Gonçalves Viana e na Rua E pelo bibliógrafo Inocêncio Francisco da Silva ( estas Ruas A e E ainda em 1941  eram indicadas como a construir pelo que anos mais tarde este dois topónimos foram novamente atribuídos noutras artérias já executadas).

Freguesia de São Domingos de Benfica (Foto: Sérgio Dias)

Freguesia de São Domingos de Benfica
(Foto: Sérgio Dias)

António Cândido de Figueiredo (Tondela- Lobão da Beira/19.09.1846 – 16.09.1925/Lisboa) foi um poeta, escritor e jornalista, que se distinguiu sobretudo como filólogo e lexicólogo, tendo sido o autor de um dos mais reputados dicionários da língua portuguesa, o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, publicado em 1899 e que alcançou 25 edições sendo a última em 1996. Também fez parte da comissão que em 1911 definiu as bases ortográficas da língua portuguesa, junto com Carolina Michaëlis  e Leite de Vasconcelos.

Concluído o curso de Teologia (1867) no Seminário de Viseu, Cândido de Figueiredo formou-se em Direito (1874) em Coimbra, e acabou por fixar residência em Lisboa em 1876, onde foi advogado e professor do Liceu Central de Lisboa (1882) e chegou a subdirector-geral do Ministério da Justiça. Para além da sua obra poética e em prosa, de que destacarmos a sua Lisboa no ano 3000, obra de crítica social e institucional (1892), também publicou regularmente em revistas e jornais, sobretudo crónicas para abordar o uso correto da língua portuguesa. Fundou e dirigiu o periódico A Capital e foi redator do diário Globo, do jornal humorístico A Paródia de Rafael Bordalo Pinheiro sob o pseudónimo «O Caturra», e do  Diário de Notícias  com o pseudónimo de «Cedef».

Também traduziu numerosas obras de filologia e linguística e foi um dos sócios fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1876, para além de na Academia das Ciências de Lisboa ter sido eleito sócio correspondente (1874), eleito sócio efetivo (1915) e presidente até à data do seu falecimento.

Enquanto político, Cândido de Figueiredo foi Presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal (1875), governador civil do Distrito de Vila Real (1892-1893), secretário particular de Bernardino Machado como Ministro das Obras Públicas (1893), para além de ter sido eleito vogal do Conselho Superior de Instrução Pública (1887) em representação do professorado de ensino livre e nomeado  membro da comissão encarregada de rever a nomenclatura geográfica portuguesa pelo Ministério de Reino (1890).

E finalmente, temos os «Triunfos do tomate», receita de um vizinho de Cândido de Figueiredo:

«Diz o prolóquio que não há boa cozinha sem tomates, e diz um vizinho meu, a flor dos gulosos, que onde mais triunfa aquele belo fruto é no doce. E exemplifica: deitem-se tomates, bem lisos e pouco maduros, num alguidar, um quilograma deles, pouco mais ou menos. Escaldem-se e pelem-se com água a ferver, cortem-se em gomos, tire-se-lhes a pevide e ponham-se os gomos a escorrer. 

Num tacho que tenha meio litro de água, deite-se um quilograma de açúcar e deixe-se ferver até ao ponto de espadana. Seguidamente, deitem-se no mesmo tacho os gomos do tomate, bem escorridos, e deixem-se chegar ao ponto de doce de conserva. Quando este manjar tenha arrefecido, deite-se em pires e sirva-se.

Os paladares mais finos e mais autorizados são unânimes em que é uma delícia aquele pitéu. É de comer e chorar por mais.

Em testemunho de verdade, Cândido de Figueiredo »

Freguesia de São Domingos de Benfica (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia de São Domingos de Benfica
(Planta: Sérgio Dias)

Outros temperos da toponímia de Lisboa

Campo das Cebolas - Placa Tipo II - Freguesia de Santa Maria Maior (Foto: Mário Marzagão)

Campo das Cebolas – Placa Tipo II – Freguesia de Santa Maria Maior
(Foto: Mário Marzagão)

Nos outros temperos presentes na toponímia de Lisboa, que não as especiarias ou o azeite a que já nos referimos, registamos as cebolas para cozinhar os caracóis, as pataniscas de bacalhau, os peixinhos da horta, a meia desfeita ou o bacalhau à Brás, bem como o louro usado para fazer pipis, iscas com elas ou ervilhas com ovos escalfados.

Na confluência da Rua da Alfândega, Rua dos Bacalhoeiros, Rua do Cais de Santarém e a  Avenida Infante Dom Henrique fica o Campo das Cebolas que, de acordo com Gomes de Brito, «Era antigamente Rua direita da Ribeira. (…) Comquanto no Tombo da Cidade (1755), venha designado sob o nome de Rua direita da Ribeira, já a planta de J. Nunes Tinoco (1650), o menciona com o título actual.» Como Campo das Cebolas também aparece já na descrição paroquial da freguesia de «Santa Maria Mayor» anterior ao terramoto de 1755 e, como «rua da praya, ou Campo das Cebollas», na planta da freguesia de São João da Praça após a remodelação paroquial de 1770. Este topónimo deve ter tido origem no comércio local de produtos hortícolas já que desde os fins do séc. XV o mercado de víveres anteriormente sediado no Terreiro do Paço [é Praça do Comércio desde 1760] foi transferido para a Praça da Ribeira Velha.

Beco do Loureiro - Freguesia de Santa Maria Maior (Foto: Sérgio Dias)

Beco do Loureiro – Freguesia de Santa Maria Maior
(Foto: Sérgio Dias)

Já o louro surge em 6 arruamentos. Comecemos pela Rua Nova do Loureiro, na Freguesia da Misericórdia, assim designada pelo Edital do Governo Civil de Lisboa de 05/08/1867 e que até aí se denominava Rua do Loureiro, denotando as raízes rurais dos local onde também pontificam a Rua da Vinha e a Calçada do Cabra.

A seguir temos o Beco do Loureiro, na Freguesia de Santa Maria Maior, a estender-se do Pátio do Peneireiro à Rua de Guilherme Braga e que já aparece mencionado nas descrições paroquiais anteriores ao Terramoto de 1755, na freguesia de Santo Estêvão de Alfama.

Nas imediações temos a Rua do Loureiro, a ligar a Rua de Guilherme Braga à Rua das Escolas Gerais, artéria que já  aparece referida nas descrições paroquiais anteriores ao Terramoto de 1755, na freguesia do Salvador e após a remodelação paroquial de 1780, surge sucessivamente nas freguesias de S. Miguel, de Santo Estêvão e de novo, na freguesia do Salvador.

Rua da Quinta do Loureiro- Freguesia de Campo de Ourique (Foto: Sérgio Dias)

Rua da Quinta do Loureiro- Freguesia de Campo de Ourique
(Foto: Sérgio Dias)

Se rumarmos à Freguesia da Estrela, encontramos a Estrada do Loureiro, topónimo que deriva da sua proximidade à antiga Quinta do Loureiro que ali existia, razão também para o Edital municipal de 19/10/2001 atribuir ali, num novo arruamento, o topónimo Rua da Quinta do Loureiro (Freguesia de Campo de Ourique). A Quinta do Loureiro situava-se no Vale de Alcântara, e segundo a informação de Luís Pastor de Macedo esta quinta existia pelo menos desde o final do século XVII, pois em 1718 o seu proprietário António de Albuquerque Coelho de Carvalho afirmava estar ela na posse de sua família há oitenta anos conforme consta do Livro dos Prazos da Freguesia de São Pedro de Alcântara. A Quinta do Loureiro deve ter existido até ao início do século XX, uma vez que aparece referenciada na planta realizada em 1856-58 por Filipe Folque e mais tarde, numa planta de 1910, assim como na «Planta da Cidade» de 1948, do Instituto Geográfico e Cadastral, encontramos referências toponímicas relativas à Quinta do Loureiro como o Caminho da Quinta do Loureiro e a Estrada do Loureiro. A Estrada do Loureiro começava na Rua Capitão Afonso Pala e corria em paralelo com a Rua Possidónio da Silva e a Rua Maria Pia. Nos antigos terrenos da Quinta do Loureiro surgiu uma nova urbanização de 14 lotes de habitação para realojamento do Casal Ventoso, então designados por Empreendimentos Ceuta Norte, que receberam os primeiros inquilinos em  abril de 2001 e nesta nova urbanização surgiu um novo arruamento no prolongamento da Rua Costa Pimenta, paralelo à Avenida de Ceuta, com início na Rua Costa Pimenta e final na Rua do Arco do Carvalhão que é a Rua da Quinta do Loureiro.

Freguesia de Santo António - Placa Tipo II (Foto: Sérgio Dias)

Freguesia de Santo António – Placa Tipo II
(Foto: Sérgio Dias)

A Travessa do Loureiro, na Freguesia de Santo António, liga a Rua do Passadiço à Rua de Santa Marta, e aparece referida como Rua do Loureiro já na planta da freguesia de Santa Joana, após a remodelação paroquial de 1780, passando a  surgir como Travessa em 1857,  no Atlas da Carta Topográfica de Lisboa de Filipe Folque.

Finalmente, no sítio do Chão do Loureiro, cuja primeira referência data de 1464 num livro de Emprazamentos, deparamos na Freguesia de Santa Maria Maior com o Largo do Chão do Loureiro e a Travessa do Chão do Loureiro. Se sobre o Largo desconhecemos a data da sua fixação na memória da cidade já sabemos sobre a Travessa que era o Beco do Chão do Loureiro até o Edital municipal de 04/12/1882 lhe mudar a categoria. De acordo com Luís Pastor de Macedo, na sua Lisboa de Lés a Lés, «Talvez tivesse sido a travessa que C. R. de Oliveira indica em 1551 com o mesmo nome. Em 1756 era a calçada ou calçadinha do Chão do Loureiro, em 1827 era as escadinhas da mesma denominação e por fim passou para a categoria de beco.»

Largo e Travessa do Chão do Loureiro - Freguesia de Santa Maria Maior (Planta: Sérgio Dias)

Largo e Travessa do Chão do Loureiro – Freguesia de Santa Maria Maior
(Planta: Sérgio Dias)

A Rua do pintor real Marciano Henriques da Silva, no Bairro do Rego

Freguesia das Avenidas Novas (Foto: Sérgio Dias)

Freguesia das Avenidas Novas
(Foto: Sérgio Dias)

O pintor Marciano Henriques da Silva contribuiu para o Cozinheiro dos Cozinheiros (1870) de Paulo Plantier com uma receita de Innochi e está desde 2009 perpetuado numa artéria do Bairro do Rego com a legenda «Pintor/1831 – 1873», aliás um bairro cuja toponímia alberga muitos pintores.

Esta artéria que liga a Rua Sousa Lopes à Rua Jorge Afonso – topónimos que também homenageiam a pintores -, era a Alameda da Estação (PER do Rego) e pelo Edital municipal de 16/09/2009 passou a denominar-se Rua Marciano Henriques da Silva. Nas imediações encontramos ainda a Rua Francisco Tomás da Costa e a Rua Carlos Reis, referentes ainda a pintores.

Marciano Henriques da Silva (Ponta Delgada- Fajã de Baixo/07.06.1831 – 03.04.1873/Lisboa) foi o pintor que o rei D. Luís escolheu para pintor da Casa Real e diretor da Galeria de Pintura do Palácio Real da Ajuda, no período de 1865 a 1873. Discípulo de Charles Martin, também cursou a Academia de Belas Artes de Lisboa a partir de 1849 e foi professor de Pintura Histórica desta Academia lisboeta, a que acrescentou estudos em Paris, Londres e Roma, tendo desenvolvido uma pintura romântica de retratista e temas do passado nacional onde sobressaem os quadros O Cardeal D. Henrique recebendo a notícia da morte de D. Sebastião em África, Os últimos dias de Tasso, Recordações de Polombara, Cristo e a adúltera, Retrato de um negro ou Retrato de Celina, a artista com quem casou em 1856.

Parte substancial da sua obra está no Palácio Nacional da Ajuda mas também está representado no açoriano Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada.

Freguesia das Avenidas Novas (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia das Avenidas Novas
(Planta: Sérgio Dias)

Por último, deixamos a receita de Innochi de Marciano Henriques da Silva:

«Tomem-se 3 quilogramas de batatas, muito bem cozidas, tire-se-lhes a pele e amasse-se tudo bem. Junte-se-lhes 125 gramas de manteiga, 3 gemas de ovos; torne-se a amassar com uma pouca de farinha para ligar, deite-se-lhe sal e pimenta, e depois de bem amassado façam-se rolos pequenos. Tenha-se um tacho meio de água, e logo que esta esteja a ferver deitem-se-lhe os rolos; assim que tornar a levantar fervura, os rolos vêm a cima e tiram-se para fora com uma escumadeira. Deve haver todo o cuidado em não deixar ferver de mais, porque então a batata fica em papas.

Substância – Tenha-se 125 gramas de carne escolhida, um pouco de toucinho bom e corte-se tudo aos bocados pequenos. Pica-se o toucinho, juntado-lhe 2 cebolas pequenas ou uma grande, até que fiquem numa massa; junte-se-lhe salsa bem picada, meta-se tudo num tacho, e quando começar a derreter deite-se-lhe a carne picada; cubra-se para ir puxando, e quando chegar a um certo grau deite-se-lhe o sumo de 2 tomates e deixe-se estar até adquirir bom gosto.

Molho – Batam-se 2 gemas de ovos e vá-se-lhe deitando pouco queijo parmesão ralado, coisa de uma colher de sopa; quando estiver tudo bem batido deite-se-lhe de espaço a espaço a substância já feita, mexendo sempre para dissolver bem.

Tenham-se os rolos numa travessa e deite-se em cada camada um pouco de queijo parmesão e o molho. Repita-se isto camada por camada e se sobejar molho deite-se-lhe por cima.»

 

Os vinhos do Poço do Bispo na toponímia local

Freguesia de Marvila (Foto: Sérgio Dias)

Praça David Leandro da Silva – Freguesia de Marvila
(Foto: Sérgio Dias)

O Poço do Bispo guarda memórias vinícolas que passam desde logo pela Praça David Leandro da Silva, a Rua José Domingos Barreiros e a do seu filho (a Rua Acácio Barreiro), todas na Freguesia de Marvila, bem como as vizinhas Calçada e Travessa da Picheleira, nas freguesias de  Marvila e do Beato.

Em 1853 a moléstia das vinhas provocou a decadência das indústrias ligadas à produção de vinho mas a partir da década de 70 do séc. XIX já apareciam sinais de recuperação, notórios no crescimento das tanoarias e armazéns de vinhos no Poço do Bispo, beneficiando agora da inauguração do caminho de ferro em 1856. De 1901 a 1913 apareceram as tanoarias na Rua Capitão Leitão e os armazéns de vinhos de Abel Pereira da Fonseca. Também no Guia de Portugal, de 1924, se pode ler «Do Beato ao Poço do Bispo sucedem-se ininterruptamente os armazéns, tanoarias, depósitos de vinhos, etc. De vez em quando avista-se o rio coalhado de pequenas embarcações.»

A Praça David Leandro da Silva, tem desde logo a Casa José Domingos Barreiros, fundada em 1896, do ramo comercial dos vinhos, por grosso e para exportação, tendo até participado, em 1922 e em 1932,  na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, com mostra de vinhos tinto, branco, claretes e rosés, e na Feira de Amostras de Produtos Portugueses de Angola e Moçambique. Está também instalada nesta Praça a Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca, empresa fundada  em 1906, que deixando os anteriores armazém de vinhos da Rua do Amorim e, ainda antes, os da Rua da Manutenção, ergueu nesta Praça em 1917, a partir do traço do arqtº Norte Júnior, uns novos que até receberam o cognome de catedral do vinho.

A Praça David Leandro da Silva nasceu do Edital municipal de 09/04/1917, na via pública compreendida  entre as Ruas Fernando Palha, Amorim e do Açúcar, a que acrescentou, por Edital de 06/06/1917, as propriedades da Rua do Açúcar com os nºs de polícia 12A,12,13,101,103,105, 63,64 e 65, prestando assim a edilidade homenagem ao  comerciante David Leandro da Silva, que tanto contribuiu para o bem social e engrandecimento comercial e industrial do Poço do Bispo.

Sabemos que David Leandro da Silva casou na Freguesia da Sé com Rosa Maria da Silva em 7 de janeiro de 1871 e que teria falecido antes de 14 de setembro de 1895, já que nessa data a sua viúva solicitou à Câmara a abertura de ruas na sua propriedade, sita a sueste da Rua de Vale Formoso de Baixo. No ano seguinte, por escritura de 16 de março, os herdeiros de Ventura Luís de Macedo e David Leandro da Silva doaram ruas à Câmara, no sítio de Vale Formoso. Acresce que uma planta de 1909 indica as canalizações de esgoto mandadas fazer pela Câmara nas estradas de Vale Formoso e Vale Formoso de Cima e uma outra canalização já antes mandada fazer por David Leandro da Silva.

Freguesia de Marvila - Placa Tipo II (Foto: Sérgio Dias)

Freguesia de Marvila – Placa Tipo II
(Foto: Sérgio Dias)

Já o arruamento vulgarmente designado por Rua Acácio Barreiros, entre a Rua do Açúcar e a zona da jurisdição do Porto de Lisboa, foi oficializado por Edital de 23/04/1980 como Rua Acácio Barreiro, com a legenda «1900 – 1967». Refere-se a Acácio Domingos Barreiro (Lisboa/10.06.1900 – 30.11.1967/Lisboa), licenciado em Direito e filho do conhecido armazenista de vinhos daquela zona oriental da cidade, José Domingos Barreiros, que continuou o negócio da família. Foi também um dos primeiros administradores do Banco Português do Atlântico e benemérito da zona já que em consequência da morte prematura do seu filho, José Bento Domingos Barreiro então um jovem de 24 anos, num violento acidente de viação, decidiu com a sua mulher e filha – Maria Antónia Barreiro – doar à Misericórdia de Lisboa, os edifícios que possuíam junto ao palácio da Mitra, no Poço do Bispo e aí nasceu o Centro de Saúde e Assistência Doutor José Domingos Barreiro.

Freguesia de Marvila (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia de Marvila
(Planta: Sérgio Dias)

Nesta incursão pela área vinícola da gastronomia lisboeta acrescem ainda dois topónimos que partilham o seu território entre as Freguesias de Marvila e do Beato, a Calçada da Picheleira e a Travessa da Picheleira, topónimos antigos derivados do sítio da Picheleira, cuja data de fixação se desconhece. Pode-se levantar a hipótese do topónimo Picheleira marcar a existência no local de picheleiros, isto é, fabricantes de pichéis, que eram pequenos vasos, geralmente de estanho, por onde se tirava vinho das pipas ou tonéis, ou se usavam para beber vinho.

E finalmente, mostramos um poema de Carlos Pinhão evocando os vinhos da zona:

Poço do Bispo

Quando o vizinho descobriu/com mágoa/ que era vinho /e não água/o que havia no poço/por secreta ligação/não com o Além/mas com um armazém/da redondeza/rezou um padre-nosso/dessa vez/com certeza/Ou dois/Ou um de três

Freguesia do Beato (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia do Beato
(Planta: Sérgio Dias)

A Rua Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, na artéria onde viveu

Freguesia da Misericórdia (Foto: Sérgio Dias)

Freguesia da Misericórdia
(Foto: Sérgio Dias)

Eduardo Coelho, o fundador do Diário de Notícias, foi perpetuado com o seu nome na artéria lisboeta em que viveu, no Bairro Alto de todos os jornais, e participou no Cozinheiro dos Cozinheiros (1870) de Paulo Plantier através do envio da receita de Ovos Verdes à Figueirense.

Foi quando o Conde Ottolini era Presidente da Câmara Municipal de Lisboa que por Edital municipal de 18/12/1893 a Rua dos Cardais de Jesus, onde o jornalista viveu, se passou a denominar Rua Eduardo Coelho, com a legenda «Fundador do Diário de Notícias / 1835 – 1889». Contudo, 32 anos depois, quando era Portugal Durão o Presidente da edilidade alfacinha, também um Edital de 15 de junho de 1925 da Comissão Executiva da Câmara registou que na sessão de 20 de fevereiro desse ano se havia deliberado que a alameda de São Pedro de Alcântara se passasse a denominar-se alameda Eduardo Coelho, tanto mais que era o local onde desde 29 de dezembro de 1904 se encontrava o monumento à memória do jornalista – com busto e estátua de Costa Mota (tio) e pedestal de Álvaro Machado – custeado por subscrição pública promovida pelo Diário de Notícias e porém, o espaço continuou a ser vulgarmente conhecido como Jardim de São Pedro de Alcântara.

Monumento a Eduardo Coelho, inaugurado a 29 de dezembro de 1904 (Foto: Rui Mendes)

Monumento a Eduardo Coelho, inaugurado a 29 de dezembro de 1904
(Foto: Rui Mendes)

José Eduardo Coelho (Coimbra/ 23.04.1835 – 14.05.1889/Lisboa) ficou órfão de pai aos 13 anos e a foi mãe mandou-o para Lisboa, para conseguir emprego, já que sozinha não conseguia sustentar a prole de onze filhos, onde se incluía Adolfo Coelho (também nome de rua na Freguesia da Penha de França, desde a publicação do Edital de 13/05/1949). Na capital, Eduardo Coelho começou por trabalhar no comércio mas depois, a exemplo de seu pai, foi aprender o ofício de tipógrafo e mais tarde, em 1857, até ingressou na Imprensa Nacional.

A partir de 1858, Eduardo Coelho viveu principalmente do jornalismo, escrevendo notícias, editando correspondência dos leitores e matérias de correspondentes da província e ainda como crítico de teatro, em jornais como O Conservador, Gazeta de Portugal e Revolução de Setembro, sendo que neste último foi durante 3 anos o responsável pelo noticiário e que António Rodrigues Sampaio, o diretor do jornal, nem sequer depois da fundação do Diário de Notícias quis exonerar Eduardo Coelho do cargo de noticiarista do jornal, pelo que teve de acumular os dois cargos durante algum tempo. Foi também redator principal e diretor da Crónica dos Teatros (1861) e em 29 de dezembro de 1864, com Quintino Antunes, fundou o Diário de Notícias, tendo também sido o primeiro diretor do jornal, cargo que exerceu até ao seu falecimento. Procurou fazer um jornal segundo o modelo de sucesso surgido noutros países, como o  Petit Journal parisiense, um jornal popular dirigido a todos os públicos, e não apenas às elites, que por isso alargou as notícias do mundo também para a vida social quotidiana, através do relato de crimes, de incêndios, de casos pessoais ou competições desportivas, para além de diminuir o preço do jornal, contrabalançando esse custo com grandes tiragens e captação de publicidade.

Também algum rendimento conseguia como escritor de peças teatrais, romances e folhetins.  Quando ainda trabalhava no comércio lisboeta estreara-se na literatura com a publicação dos versos sarcásticos O Livrinho dos Caixeiros (1852) e continuou essa vocação ao longo da sua vida com obras como Opressão e Liberdade (1862-1871), Amor aos Bofetões (1865) ou Portugal Cativo (1884).

Eduardo Coelho fez ainda assessoria política, nomeadamente como secretário dos políticos José Estêvão e António Feliciano de Castilho e foi um dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa.

Para remate de artigo servimos Ovos Verdes à Figueirense, como Eduardo Coelho os fez para Paulo Plantier:

(declaração prévia) – Não me condecoro com a glória de inventar uma receita. declara-o para descanso das cinzas venerandas de Vatel, e tranquilidade de alguns cozinheiros meus amigos, que, aliás, não tinham de que assustar-se com a minha concorrência. cada qual no seu ofício. Homero, segundo a afirmação preciosa de um escritor francês, foi o primeiro que no mundo coligiu os preceitos da arte culinária; Sócrates ensinou os gregos a comer, temperando as comidas como o mais apetitoso dos sais, o sal ático, o sal do espírito com que Platão também adubava as suas ceias; Nereo de Chio soube preparar um congro digno dos deuses; o grande , e imortal Apício, que sucumbiu à pavorosa ideia de poder morrer de fome, tendo as algibeiras recheadas de  de ouro, inventou numerosos pratos e tentadores molhos que legaram o seu nome a esta sua remotíssima posteridade de cozinheiros e comilões. Até Lamprias, o próprio Lamprias, o predecessor feliz do inventor de Nabob, compôs um molho, cujo cheiro chegou até nós. Eu, mísero de mim, sem poder ganhar prestígio destes eleitos da mesa e da cozinha, de quem Desaugiers dizia: “Un cuisiner, quand je dine, /Me semble un être divin./Qui du fond de sa cuisine/Gouverne le genre humain.”

Limito-me a contar como se fazem os Ovos verdes à figueirense, pitéu delicioso, que os leitores saborearão com ditíssima explicação. Mãos ao tacho!

Tome-se uma dúzia de ovos e cozam-se. Depois de cozidos cortem-se ao meio e tirem-se-lhes as gemas, conservando inteiras as metades das claras. Pique-se muito miúdo uma cebola, e uma porção equivalente de salsa, deitando-se-lhe uma ou duas colheres de pão ralado, pimenta e algumas pedras de sal. Aloure-se isto num tacho ou frigideira com manteiga de vaca. Amasse-se depois com as gemas dos ovos e com esta massa encham-se as claras. Descanse-se um momento, já que Deus também descansou ao sétimo dia, e respire-se, não de modo que se sopre e espalhe a farinha de trigo que deve estar já preparada, para se dissolver em gema de ovo, a fim de passar as claras recheadas por essa dissolução, para as pôr a corar na frigideira com manteiga de vaca, deitando-as com a face do recheio para baixo. Tiram-se apenas estiverem coradas, e profira-se o “eureka!”, que estão prontos os ovos verdes. Deitem-se estes então num prato coberto, ou numa travessa, e derrame-se-lhe por cima um molho de vinagre destemperado com água, ligeiramente engrossado ao lume com algumas pitadas de farinha e temperado com uma folha de louro. Enfeite-se o prato com vários raminhos de salsa, e… comam-se.

 

Freguesia da Misericórdia (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia da Misericórdia
(Planta: Sérgio Dias)

Conde de Monsaraz, o poeta alentejano da Salada Primitiva, numa rua da Penha de França

Conde de Monsaraz em 1908 (de lenço sobre o casaco) (Foto: Joshua Benoliel, Arquivo Municipal de Lisboa)

Conde de Monsaraz em 1908 (de bigode branco)
(Foto: Joshua Benoliel, Arquivo Municipal de Lisboa)

António de Macedo Papança, o  poeta alentejano que para o Cozinheiro dos Cozinheiros de Paulo Plantier enviou a sua «Salada Primitiva», na sua qualidade de  Conde de Monsaraz dá nome a uma artéria da Penha de França, antes identificada como Rua nº 1 do Olival do Monte Alperche, desde que o Edital Municipal foi publicado em 18/07/1933, atribuindo também a legenda «Poeta/ 1852 – 1913».

António de Macedo Papança (Reguengos de Monsaraz/18.07.1852-17.07.1913/Lisboa), 1º visconde (decreto de 17/01/1884) e depois 1º conde de Monsaraz (decreto de 03/05/1890),  foi um poeta e político que ingressou no Partido Progressista em 1886, ao tempo liderado por Anselmo José Braamcamp e foi deputado eleito por Évora (1886), Par do Reino (1898) e embaixador-delegado ao Congresso da Paz em 1900, sendo em 1906 comendador de Santiago de Espada e no ano seguinte agraciado com a a grã-cruz da Ordem de Afonso XII de Espanha.

Freguesia da Penha de França (Foto: Sérgio Dias)

Freguesia da Penha de França
(Foto: Sérgio Dias)

Filho de um rico proprietário rural, o maior do concelho de Reguengo de Monsaraz, e formado bacharel de Direito em 1874 exerceu advocacia mas cedo se dedicou antes à poesia, de pendor naturalista, na qual já se iniciara enquanto estudante universitário. Privou com João Penha e Cesário Verde  e escolheu uma estética parnasiana que progressivamente foi passando para um exacerbado nacionalismo que é quase um prelúdio de António Sardinha. De entre as suas várias obras, destacam-se Crepusculares (1876), Catarina de Athayde (1880), Telas históricas (1882) e sobretudo, Musa Alentejana (1908).

Colaborou ainda em diversos jornais e revistas, como Brasil-Portugal, A Evolução, A Folha,  Ilustração Portuguesa, Renascença, Ribaltas e Gambiarras. Também traduziu diversas obras para o teatro e escreveu obras historiográficas de estilo naturalista e nacionalista. Foi sócio eleito da Academia Real das Ciências (1886) por proposta de Bulhão Pato, Pinheiro Chagas, Visconde de Benalcanfor e Vilhena Barbosa; da Academia Brasileira de Letras (1910),  da Sociedade de Geografia de Lisboa e do Instituto de Coimbra.

Em 1888 casou com Amélia Augusta Fernandes Coelho Simões, filha de um grande proprietário e negociante da Figueira da Foz e membro do Partido Progressista, com quem teve um único filho, o jornalista e político Alberto de Monsaraz. Proclamada a República exilou-se na Suíça e depois em Paris voltando a Portugal em 1913 para depois falecer na véspera do seu 61º aniversário.

Em Lisboa, o Conde de Monsaraz viveu  na Rua Vítor Cordon, onde veio a falecer, e a Câmara Municipal de Lisboa no ano do seu centenário homenageou-o nesse prédio com o nº7, através de uma lápide evocativa,  descerrada em 18 de julho de 1952 numa cerimónia presidida pelo Vice-Presidente da CML, Luís Pastor de Macedo.

Freguesia da Penha de França (Planta: Sérgio Dias)

Freguesia da Penha de França
(Planta: Sérgio Dias)

E finalmente, deixamos a receita da sua

SALADA PRIMITIVA

Leitor, se amas o campo e a natureza,
Se és bucólico e rude,
E na tua rudeza
Só respeitas a força e a saúde;
Se às convenções da sociedade opões
O desdém pelas normas e preceitos,
Que trazem pelo mundo contrafeitos
Cérebros e corações;
Se detestas o luxo e se preferes,
Francamente, às senhoras as mulheres,
E tens, como um pagão da velha Esparta,
Pulso rijo, alma ingénua e pança farta;
Se és algo panteísta e tens bem vivo
Esse afagado ideal
Do retrocesso ao homem primitivo,
Que nos tempos pré-históricos vivia
Muito perto do lobo e do chacal;
Se um ligeiro perfume de poesia
Que se ergue das campinas
Na paz, no encanto das manhãs tranquilas,
Te dilata as narinas
E enche de gozo as húmidas pupilas,
Leitor amigo, se assim és, vou dar-te
“Se a tanto me ajudar engenho e arte”
Uma antiga receita,
Que os rústicos instintos te deleita
E frémitos te põe na grenha hirsuta.

Leitor amigo, escuta:
Vai, como o padre-cura, cabisbaixo
Pelos vergéis da tua horta abaixo
Quando no mês de Abril, de manhã cedo,
O sol cai sobre as franças do arvoredo,
Para sorver aqueles bons orvalhos
Chorados pelos olhos das estrelas
Nos corações dos galhos;
Passarás pelas couves repolhudas
– Cuidado não te iludas,
Nem te importes com elas!
Vai andando…
Mas logo que tu passes
Ao campo das alfaces,
Pára, leitor amigo,
E faz o que te digo:
Escolhe dentre todas a mais bela,
Folhas finas, tenrinhas e viçosas
Como as folhas das rosas,
E enchendo uma gamela
De água pura e corrente,
Lava-a, refresca-a cuidadosamente.
Logo em seguida (e é o principal)
Que a tua mão, sem hesitar, lhe deite
Um fiozinho de azeite,
Vinagre forte e sal,
E ouvindo em roda o lúbrico sussurro
Da vida ansiosa a propagar-se, que erra
Em vibrações no ar,
Atira-te de bruços sobre a terra
E come-a devagar,
Filosoficamente, como um burro!